Dexaketo

Simplesmente Gaiato

A Bailarina

Desde os seis anos, Clara Silva ouvia a música em tudo. Enquanto outras crianças brincavam, ela girava no quintal, imaginando os ladrilhos como um palco. Aos treze, escondia-se no quintal para ensaiar pliés e arabescos, usando cortinas como tutus. Seus pais, o Dr. Silva e Dra. Marta, sonhavam vê-la de jaleco branco, não de sapatilhas. “Dança não é futuro”, diziam, fechando a porta do quintal ou de qualquer coisa que fizesse a menina aproximar-se da dança. Doce ilusão!

Aos quinze, Clara descobriu a Escola Municipal de Dança, a duas horas de ônibus da pequena Ruano. Roubou aulas matinais, trocando livros de biologia por cadernos de coreografia. Madrugadas eram preenchidas com o ronco do motor e o cheiro de pão dos trabalhadores. Chegava atrasada ao colégio, com os joelhos ralados de tanto cair nas curvas da estrada de terra. “Medicina ou nada!”, ameaçou o pai ao ver seu boletim manchado de vermelho.

Na escola de dança, Madame Elena, uma ex-bailarina do Theatro Municipal, reconheceu naquele corpo magricela algo raro: paixão que doía. Presenteou-a com sapatilhas de ponta usadas, ainda impregnadas do suor de outras guerreiras. “Você dança como quem respira”, sussurrou, ajustando-lhe o collant remendado.

Aos dezessete, Lucas, o primeiro namorado sério, ria de suas sapatilhas penduradas no pescoço. “Vai ficar velha cheia de calos”, zombou, tentando puxá-la para o cinema em dia de ensaio. Chorou ao vê-lo partir, mas na semana seguinte conheceu Diego, que tinha ciúme até do tempo que ela passava na barra. “Escolhe: eu ou essa obsessão”, exigiu. Na manhã seguinte, encontrou suas meias rasgadas no lixo. Dançou a tristeza até virar cinza.

Aos dezenove, Madame Elena inscreveu-a clandestinamente no concurso Jovens Talentos do Bolshoi. Por três meses, Clara treinou nas madrugadas, transformando o galpão da prefeitura em seu reino. Vendia doces na feira para pagar a viagem a Moscou, escondendo rubles entre as páginas de seus livros de Machado de Assis.

No dia da audição, um fouetté perfeito fez os jurados russos suspirarem. Quando a carta de aceitação chegou, Dona Marta a queimou, sem dó. Pobre ilusão! No tempo do e-mail e das redes sociais, queimar carta não daria em nada. Ainda naquela noite, Clara partiu com uma mochila, as sapatilhas de Madame Elena e 127o reais, resultado do que havia ganho com tanto esforço nas feiras da cidade.

Em Moscou, lavou pratos no restaurante brasileiro para pagar as meias. Dormia quatro horas, treinava dez. No inverno, os dedos sangravam nas pontas, manchando a neve de carmim. Quando a saudade apertava, dançava “O Quebra-Nozes” no alojamento vazio, imaginando os seus pais na plateia. Eles, que desde de sua partida, fingiam não mais a conhecer.

Aos 22 anos, na noite de estreia como Giselle no Bolshoi, duas figuras encurvadas sentaram-se na última fileira. O Dr. Silva segurava o programa com mãos trêmulas. Quando Clara surgiu na luz dourada, flutuando como um pássaro que rompe o casulo, Dona Marta sussurrou: “Ela está voando”. Sim, os pais tão carrascos, entenderam que Clara era quem Clara queria ser. As birras do passado, ainda meio recentes, foram deixadas de lado, para aplaudir a filha que tanto os orgulhavam.

Na recepção, os pais encontraram uma mulher de cílios postiços e coluna de aço. “Desculpe não ser doutora”, disse Clara, ainda com o tutu salpicado de lantejoulas. O pai enxugou uma lágrima com a gravata: “Você cura almas, princesa. Isso é maior que remédios”.

Na manhã seguinte, na Praça Vermelha, Clara ensinou um plié à mãe, enquanto o sol derretia décadas de rigidez. Seus pés, marcados por cicatrizes e sonhos, escreviam uma nova geografia no palco. A bailarina encantaria por anos, e não seria só orgulho de seus pais, mas todo um país, que como os Silvas, costumam desmerecer os sonhos, mas quando estes acontecem, o aplauso surge naturalmente.

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