Luana dançava como se o asfalto fosse seu camarim. Na quadra de uma pequena escola de Samba do Rio, aos doze anos, já carregava a elegância das rainhas de bateria, o torso erguido sob fantasias de plumas. Sua mãe, Carla, costurava alegorias e nutria orgulho da filha, mas guardava rancor de um nome: Ferreira.
Na escola, Rafael Ferreira era o oposto. Silencioso, cabelo alisado, camisa sempre alva, filho do pastor da Igreja Nova Sião. Os cultos desta igreja sempre condenavam o carnaval como a “festividade do maligno”, e o ódio entre as famílias era antigo: Carla acusava o pastor de tentar proibir os ensaios de samba no bairro; ele a chamava de “pecadora sem vergonha”.
Os dois se cruzaram no laboratório de biologia do colégio particular em que ambos estudavam. Rafael, encarregado de montar o esqueleto humano, derrubou acidentalmente a tíbia no chão. Luana apanhou o osso, e seus dedos se tocaram por um instante mais longo que o necessário.
— Obrigado — ele sussurrou, bem timidamente.
— Você é o menino da igreja, né? — ela perguntou, curiosa.
— E você é a menina do samba ?
Os dois sorriram, se gostaram imediatamente, ignorando o peso das heranças e valorizando o que pulsava em seus corações.
Luana e Rafael começaram a se encontrar na biblioteca, entre as estantes de livros. Ele lhe mostrava desenhos de células; ela o ensinava a marcar o pulso no surdo imaginário. Descobriram que ambos amavam Clarice Lispector e pipoca doce. Um dia, ele a levou até o telhado da escola, e sob o céu cinza do Rio, beijaram-se com a urgência de quem sabe que o tempo é inimigo.
O segredo durou até o domingo em que Dona Carla viu Luana saindo de um culto.
— Você anda com o filho daquele fanático?! — ela esbravejou em casa, rasgando um vestido de paetês. — Sabe o que ele fez? Pregou que nossa quadra era “antro de vícios”!
Na mesma noite, o pastor Ferreira invadiu a casa de Carla, após descobrir fotos dos dois abraçados no celular do filho.
— Esse demônio corrompeu meu filho! — apontou para Luana, trêmulo.
— Chame ela de demônio de novo, e eu arranco sua língua, hipócrita! — Carla avançou com uma tesoura de corte.
Luana e Rafael assistiam, imóveis, à guerra que os engolia.
Na véspera do carnaval, Luana apareceu na porta da igreja. Trazia seu colar de strass e um envelope.
— Vou me apresentar amanhã. Se você não for, eu entendo.
Na noite do desfile, em uma Intendente lotada, Rafael foi. Escondido atrás de um poste, viu Luana desfilar e encantar na avenida, um furacão de dourado. Ela o encontrou com os olhos, e pela primeira vez, ele chorou. No retorno, seu pai o esperava, com a Bíblia em punho.
— Escolha: ela ou sua alma.
Naquela noite, antes de chegar em casa, Rafael deixou um bilhete na caixa do carteiro que tinha na casa de Luana. No envelope, o escrito: “Meu amor não é pecado. Mas tenho medo de machucar você.”
Ela respondeu para si mesma ao ler: “A gente não precisa ser um desfile. Só precisamos ser.”
Na quinta-feira, primeiro dia pós-carnaval, Rafael não estava na escola. Mudara-se para o interior de São Paulo com a família. Luana e Rafael jamais se esqueceriam, porém viveriam suas vidas sem viver o amor que guardavam no peito. A intolerância machuca, maltrata e não faz bem a ninguém. Os corações de Luana e Rafael só batiam para bombear sangue, pois o amor ali havia, foi brutalmente assassinado.


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