Dexaketo

Simplesmente Gaiato

Corações e Códigos

Aos quinze anos, Leazinha era uma sombra nos corredores do colégio. Enquanto Bernardo, de dezessete, brilhava sob os holofotes do time de basquete, ela se escondia atrás de cadernos rabiscados com corações onde seus nomes se entrelaçavam: Lea + Bernardo. Ele nunca a notou. Ela, porém, memorizou cada detalhe dele: o jeito desengonçado de ajustar os óculos, a risada rouca após cada piada dos amigos, a cicatriz discreta no queixo, herdada de uma queda na infância. Às vezes, fantasiava que um dia ele a veria — mas o tempo passou, e Bernardo formou-se sem nunca saber que existira uma garota chamada Leazinha.

Vinte anos depois, o mundo havia virado de cabeça para baixo. Leazinha, agora Dra. Léa Costa, comandava a Vortex Inc., um império de inteligência artificial que revolucionara a indústria de segurança digital. Seus olhos, antes tímidos, agora desvendavam códigos complexos em telas de cristal líquido. Bernardo, por sua vez, sobrevivia. Demissões, dívidas e um casamento desfeito o levaram a bater à porta da Vortex para uma vaga de auxiliar de manutenção. Seu currículo era uma página manchada de café; o dela, uma lenda.

Bernardo ajustou a camisa puída diante do prédio espelhado da Vortex. No elevador, repetia mentalmente as frases treinadas: “Experiência em elétrica predial… disponibilidade imediata…”. Não esperava que a CEO estivesse na sala de entrevistas. Mas lá estava ela, de tailleur cinza e olhar impenetrável.

— Bernardo Silva? — a voz de Léa ecoou firme, mas algo trincou quando ele ergueu o rosto. A cicatriz no queixo dele era a mesma.
Ele assentiu, sem reconhecê-la.
— Já trabalhou na Manutenção do Shopping Centro Norte, consta aqui… — ela folheou o documento, os dedos tremendo levemente. Um coração rabiscado em um caderno velho dançou em sua memória.
— Sim, mas o shopping faliu. Tô há oito meses sem… — ele interrompeu-se, envergonhado.
Léa observou suas mãos calejadas, o mesmo jeito desengonçado de se apoiar na cadeira. Quantas vezes eu imaginei essas mãos segurando as minhas?, pensou, ironizando a própria ingenuidade.

No final da entrevista, enquanto Bernardo aguardava no saguão, Léa consultou o sistema de contratação da Vortex. O algoritmo, treinado para evitar vieses humanos, analisou competências, histórico e até microexpressões capturadas por câmeras. A resposta piscou em verde: “NÃO RECOMENDADO – Baixa compatibilidade com perfil da vaga.”

Ela ficou paralisada. Por anos, acreditara que seu sucesso a libertara daquela garota frágil. Mas agora, confrontada com a máquina impessoal que construíra, sentiu uma antiga ferida arder. Justiça ou compaixão?, questionou-se.

Digitou um comando, sobrescrevendo o veredito.

Bernardo apareceu na sala dela, uniforme azul da Vortex e um crachá brilhante.
— Vim agradecer… a senhora deu uma chance quando ninguém mais daria — ele disse, sotaque carregado de humildade.
Léa sorriu, notando que ele ainda não a reconhecia.
— Mérito seu. O sistema… errou.

Enquanto ele saía, ela abriu uma gaveta secreta em sua mesa. Dentro, um caderno escolar desbotado exibia corações vermelhos. Fechou-o devagar. Algumas histórias não precisam de finais óbvios — apenas de um recomeço.

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